Ateliê Literário | Edição 37 - Outubro/2023

As palavras do Brasil de Bolsonaro

Ilustração: Fernando Siniscalchi

Carolina Margiotte Grohmann

Carolina Margiotte Grohmann * apresenta um breve ensaio sobre a experiência de ouvir testemunhos históricos de 2018 a 2022. Exercícios para um futuro democraticamente possível, articulando com as construções elaboradas na oficina Autoritarismo e Democracia: Muros e Furos, ministrada em agosto na Biblioteca Parque Villa Lobos, pelo professor Rodrigo Silva de Sá Pedro, no âmbito do projeto Literatura Brasileira no XXI. A atividade estimulou o debate sobre a presença do autoritarismo na sociedade brasileira, construindo reflexões acerca do sistema democrático no país, relacionando as polarizações e os ataques à democracia com a linguagem enquanto manifestação de anseios, afetos, operadora política, construtiva e desconstrutiva e suas possibilidades de emancipação, resistência, censura e libertação a partir da Psicanálise.  

Boa Leitura!
       

[ALERTA GATILHO: este ensaio traz reflexões sobre as Eleições Gerais de 2018 e os anos de governo Bolsonaro; foi escrito exclusivamente aos comprometidos a fortalecer a democracia no Brasil e aos dispostos a ouvir, respeitosamente, diferentes perspectivas sobre o período.]


Para zelar pela democracia, a primeira ação é encarar a pronúncia. Respirar fundo e assumir a escuta da sua voz proferir: “Bolsonaro”.

            Prove.

            [...]

            A segunda ação é identificar: qual sentimento foi evocado ao ouvir-se dizer “Bolsonaro”? Ou: quais foram?

            Tente.

            (Se precisar, fale novamente – com atenção.)

             [...]

Dizer é intrínseco ao sentir. Você fala, você sente. Por isso, é preciso coragem para dizer: porque você vai sentir. E identificar os sentimentos é importante para elaborar os efeitos deles em você e nos outros.

Só, então, você estará livre para, caso queira, escolher não mais dizer – e estar minimamente preparado ou seguro para dizer quando for exigido. Mas é preciso esgotar a realidade da palavra em si, em você. Para ela não te sufocar.

Quem me ensinou foi uma entrevistada do livro que ouvi-escrevi, O Brasil de Bolsonaro, onde reuni o que chamei de “testemunhos históricos de um país em guerra narrativa”. Ela, em momento algum, em duas horas e meia de gravação, falou o nome ou sobrenome de Jair Bolsonaro. Para se referir a ele, usava o silêncio. Ela já tinha esgotado o nome dele em si mesma. Por isso, escolheu não mais dizer. A mim, bastou respeitar. Na entrevista e no texto final.

Outro entrevistado (que, além de eleitor e apoiador de Jair Bolsonaro, é administrador de uma página no Instagram que se apresenta como “Força das mulheres bolsonaristas”), assim que finalizou a história sobre onde estava quando ouviu o anúncio do resultado do segundo turno de 2018, tirou de mim uma conclusão: “Bolsonaro é um mito, né?” Assumir e verbalizar me libertou. Me senti confiante para seguir ouvindo e contando as histórias – sobretudo as que não comungavam com a minha.

Preciso localizar a escuta oferecida aos entrevistados de O Brasil de Bolsonaro: sou formada em jornalismo e, como escutadeira e recontadora de histórias, meu lugar foi de apoiar o entrevistado a se narrar. Somente isso. Sendo assim, em momento algum questionei suas verdades ou o confundi – apesar de, muitas vezes, escancararem incoerências. (O que me ensinou muito sobre a humanidade.) Quando duvidava da minha escuta, relia um trecho de Eliane Brum em Brasil, construtor de ruínas, que me fazia voltar para um eixo possível para seguir ouvindo:

“O que fazer diante do horror? Retomar a palavra, a que atravessa os muros. Enfrentar o desafio de construir uma narrativa, necessariamente polifônica, sobre o momento, em todos os espaços. Não desviando das contradições, para evitar que manchem a limpidez do discurso. Ao contrário. Abraçando-as, porque elas criam o discurso.”

Em outro testemunho publicado em O Brasil de Bolsonaro, provoquei o encontro de duas histórias que não conseguiram se ouvir no período eleitoral de 2018: uma prima e um primo; ela, eleitora de Fernando Haddad; ele, eleitor de Jair Bolsonaro. Cada um contou sua versão e seus sentimentos sobre o período. Contaram suas trajetórias. No testemunho dela, uma passagem em que perguntou a ele: “O que você sente quando escuta o Bolsonaro?”, que respondeu: “Eu me sinto poderoso. (...) dá vontade de pegar em arma!” O testemunho dele vem em seguida. Estávamos em 2020 e ele se sentia “enganado” pelo governo eleito – e, por isso, topou participar do livro: para ser ouvido. “Queria que alguém ouvisse minha história.”

Por isso, na introdução de O Brasil de Bolsonaro, peço atenção à coragem necessária para viver outros e à importância de encontrar seu ritmo de leitura. Literatura tem essa mágica de nos fazer “viver mil vidas em uma”. Você vai ser seu outro e, quem sabe, se reconhecer nele. E isso pode ser assustador. E também estratégico para a manutenção da democracia.

Explico. Digerir o passado, elaborar os traumas e contar a história “não desviando das contradições, (...) [mas] abraçando-as”, identificando fatos e passagens com as palavras corretas, é urgente e para agora. Daí a importância e a coragem para verbalizar e identificar sentimentos: é preciso agora falar de Bolsonaro porque não é só sobre ele, mas sobre nossas relações pessoais, possibilidades de futuro coletivo e, claro, para tornar a democracia uma palavra viva.

Reconheço a dificuldade de mobilizar para a urgência e também para a oportunidade de olhar para o retrovisor desse trem chamado Brasil, que há muito, muito tempo, trafega por um trilho cheio de buracos e armadilhas – logo, sem segurança alguma para seguir em paz, independente do seu governador (apesar de ele ser determinante para o tempo da catástrofe). Mas como responder aos chamados: “aproveite Lula e espie o Brasil de Bolsonaro”; ou “espie porque Bolsonaro passou, mas segue à espreita”? É aterrorizante encarar a possibilidade de voltar a viver 2018 e 2022. É assustador encarar a possibilidade de reviver mais quatro anos iguais de 2019 a 2022. Mas é urgente. Aproveitar agora, que estamos minimamente acolhidos, para olhar pra trás. Com calma. Para nos organizar. Para poder dizer o que precisa ser dito sem medo e com as palavras exatas, enxutas dos seus significados e dos seus sentimentos evocados.

Aproveitar, inclusive, para localizar Bolsonaro como um catalisador de crimes que, antes de sua eleição, estavam minimamente debaixo do tapete. Ele representa a figura libertadora de uma sociedade brasileira que, na sua essência histórica, é estruturalmente racista, misógina e negacionista e que bastou uma fagulha para que toda sujeira fosse revelada. “Sabe esse sentimento que você tem? Coloque para fora: eu puxo a fila.” Nessa perspectiva, me recuso a usar a palavra “bolsonarismo”: porque essa história é mais antiga que o Bolsonaro. Outra entrevistada resumiu esse pensamento assim: “Não é que a gente está seguindo o que o Bolsonaro fala, mas sim que o Bolsonaro fala aquilo que a gente pensa.” 

É preciso localizar. O tempo e a palavra. Dissolver a palavra “bolsonarismo” para o que ela realmente significa e não mais utilizá-la como enfeite ou fantasia para o que sempre foi:

            É preciso tornar o racismo uma palavra-ação para combatê-lo.

            É preciso tornar o genocídio uma palavra-ação para ser julgada.

            É preciso tornar a misoginia uma palavra-ação para proteger as mulheres.

            É preciso tornar a crise climática uma palavra-ação para lutar pela conservação da Amazônia e dos seus defensores.

            Etc. etc.

Só, assim, recuperando o significado e os sentimentos das palavras, localizadas num tempo histórico apropriado, poderemos refundar a democracia e considerar a possibilidade de outras formas de ser e estar. E manter o olho no passado e reconhecer também as vitórias. Tivemos uma larga batalha vencida: a eleição, a posse de Lula e a inelegibilidade de Jair Bolsonaro. Mas precisamos lembrar que essa foi uma batalha: quais são as próximas?; como nos preparar?; quais serão nossas estratégias?; onde não podemos mais errar, de jeito algum com a democracia, com a nossa história? Começando, sugiro, por um dos mais gravíssimos: deixar de encarar Bolsonaro restrito ao passado. Por isso, é sim preciso falar “da coisa e do coiso”. Elaborar esse trauma, dar o nome correto para a sua origem, para o que ele foi e ainda é pode evitar que ele se repita porque estaremos instrumentalizados e fortes emocionalmente para enfrentá-lo quando novamente a ameaça reaparecer. Porque ela vai. Porque ela sempre existiu: ela fundou o Brasil.

O autoritarismo, sobretudo na sua representação contemporânea maior, Bolsonaro, é um problema que vem em numeral: 01, 02, 03, 04. O autoritarismo legitimado por Bolsonaro é um gerúndio em expansão. Bolsonaro é passado, mas também futuro: por isso a urgência de usarmos o retrovisor: olhar o que foi, mas também o que vem. Se não agora, quando?

Para finalizar, lembro de outra entrevistada, que passou pela experiência de ser mesária nas eleições de 2008 em Boston, nos Estados Unidos. Ela finaliza sua história me questionando: se eu, que tinha ouvido tantas e tantas histórias, sobretudo de pessoas que votaram em Bolsonaro em 2018, teria “uma palavra de ajuda”.

Não pude respondê-la na hora, sobretudo porque não tinha o que responder – e ainda nem tenho, ao certo. Mas arrisco dizer que ouvir não me fez alguém melhor. Não me fez alguém complacente ou disponível a abraçar o outro a qualquer custo. Não. De forma coerente e consistente, ouvir o outro me instrumentalizou a, como finalizei na introdução do livro, definir minha posição no lado que escolhi lutar. “Afinal, a luta pela democracia exige batalha diária – e também posicionamento. A guerra é sempre.” Nada se constrói com autoritarismo. Tudo se destrói.

* Carolina Margiotte Grohmann: formada em jornalismo e mestranda no Programa de Pós-Graduação em Culturas e Identidades Brasileiras do Instituto de Estudos Brasileiros/USP. Participou da residência cultural e artística “Os brasis em São Paulo” como pesquisadora, entrevistadora e escritora da história do sambista Carlão do Peruche, em exposição no centro cultural Red Bull Station (2016). Colaborou como pesquisadora, entrevistadora e escritora em inúmeros projetos de memória social e institucional. Atuou como entrevistadora e escritora de tributos para o Inumeráveis Memorial (2020-2021) e participou de projetos culturais e de literatura na Amazônia brasileira. O Brasil de Bolsonaro - testemunhos históricos de um país em guerra narrativa é seu primeiro livro autoral.