Edição 16 - Janeiro/2022 | Tema
Modernos, antes de 22
Uma oficina que pudesse pensar a modernidade, no Brasil, nas últimas décadas do século XIX. Talvez pareça paradoxal – e é. Modernidade implica mergulho em paradoxos que apagam ou embaralham limites e fronteiras: os limites entre nacionalismo e cosmopolitismo, os limites entre tradição e aceleração da percepção do presente, entre arte e sociedade burguesa, entre literatura e imprensa, entre comunicação e adensamento, entre participação e exclusão.
Essa oficina articulou-se como uma proposta de leitura de poemas e poemas em prosa, mas também uma leitura de textos divulgados em livros e textos divulgados na imprensa. Uma leitura que acordasse aqueles paradoxos e explicitasse em que medida e com qual intensidade era possível ser moderno, no Brasil, antes de 22. Ser moderno pela enunciação de uma concepção de escrita dessacralizada e conflituosa, ser moderno pela proposição de uma relação (tensa) com algum projeto de leitor ou de leitura. Ser moderno pela recusa a um lugar no mundo convencional e pelo desejo frustrado desse mesmo lugar. Ser moderno por uma escrita que se banaliza e prosifica, circulando como mercadoria efêmera nas letras provisórias dos jornais – ser moderno aspirando ainda a uma palavra que perdura e lança raízes na letra impressa, no objeto livro.
Nenhuma relação com eventos de uma semana: a modernidade é herança de um trânsito bem mais amplo. De um diálogo com fronteiras muito alargadas, ou sem fronteiras discerníveis.
Ler textos datados de mais cem anos e neles encontrar tensões em que ainda nos vemos mergulhados, em alguma medida, era ainda proposta dessa oficina. Recuperar algo do que se podia pensar por volta de 1883, em uma sociedade escravocrata, um país de analfabetos – com a urbanização em plena efervescência, as relações com a imprensa se adensando e o lugar social do homem de letras em completa ebulição.
Interrompidos pelos pombos que, por vezes, entravam na sala, começamos por dois homens de origem muito diferentes, ambos humildes, com vidas difíceis e versos muito poderosos: Cruz e Sousa e Alphonsus de Guimaraens. A questão de partida era entender como aqueles escritos produzem uma imagem do escritor. E qual seria? Em seguida, tratava-se de pensar como os mesmos textos convocam a atividade da leitura. Quais movimentos de interlocução esses escritos demandam? Quais reflexões sobre o lugar da atividade intelectual no movimento das cidades então em frenética transformação? Outra questão seria observar como uma imagem da escrita – e sua possibilidade de intervenção no mundo – se desenha em uma poesia inscrita em pleno ritmo contraditório da modernidade. Em um terceiro movimento, fomos aos paralelos com referenciais não locais de modernidade. Por fim, ao lugar de uma voz feminina nesse contexto de efervescência – e uma voz feminina que se enuncia como desejante.
O som dos skatistas nos acompanhou por todo o percurso – sons do mundo sempre reverberam na poesia: as tensões com o mundo, as intervenções do mundo, o conflito com o mundo. Vilões que choram, imagens refletidas na lama de uma poça, um poeta que perdeu sua auréola, uma mulher acossada pelas demandas de um país ainda muito puritano.
No último encontro, tivemos a presença de Sílvia Maria Azevedo e Tânia Regina de Lucca, da UNESP de Assis, que nos remeteram ao centro turbilhonado da escrita de João do Rio: um jornalista em pleno embate com a vida literária, um observador arguto da cidade em sua complexidade e contradição.
Vozes complexas abrigadas nos versos de Cruz e Sousa, Alphonsus de Guimaraens, Pedro Kilkerry, Gilka Machado e nas páginas em prosa de Cruz e Sousa e João do Rio: todos muito modernos, antes que o modernismo se anunciasse programaticamente, em contexto paulista, no ano de 1922.
Veja, a seguir, as análises produzidas como resultado da oficina "Modernos, antes de 22", ministrada pela professora Francine Riciere, dentro da programação da Biblioteca de São Paulo.
Francine Ricieri é mestre em Teoria Literária e Literatura Comparada pela UNESP, doutora em Literatura Brasileira pela UNICAMP, com estágio de estudos na Universidade de Paris X (Nanterre). Realizou pós-doutorado, na UNICAMP, sobre poéticas finisseculares e, na USP, em estudos da tradução. Atualmente, é docente do Departamento de Letras da UNIFESP.