Edição 28 - Janeiro/2023 | Tema
Literatura, religião e democracia em perspectiva
A oficina “Literatura, religião e democracia em perspectiva” surgiu a partir do convite do professor Pedro Marques para que pensássemos essa tríade na tradição brasileira e, assim, propuséssemos uma atividade não apenas teórica mas também prática. Para cumprir tal propósito, pareceu-nos razoável, em um primeiro momento, discutir gêneros textuais, suas características e convenções, para, na sequência, analisarmos de que maneira a literatura, a religião e a política se relacionavam em exemplos pertencentes aos tipos de textos estudados. Isso daria suporte aos participantes para que produzissem amostras textuais que contemplassem tanto a temática central desta oficina, quanto o gênero textual abordado em cada encontro. Os resultados superaram as expectativas, tamanho foi o envolvimento dos alunos e a qualidade dos textos por eles produzidos semanalmente ao longo de quatro encontros.
No primeiro deles, apresentamos estrutura e elementos do gênero sermão. O destaque incidiu sobre as características retóricas e persuasivas preponderantes nesse tipo de texto, o qual foi largamente produzido entre os séculos XVI e XVIII no Brasil, ainda sob influência de uma tradição letrada europeia e, especificamente, portuguesa. Fazendo uso de um lugar de destaque e de sua influência ante uma assembleia carente de justiça, pregadores aproveitavam para tecer críticas a governantes e reis e outras figuras importantes da sociedade da época. Era o momento em que o púlpito comungava política e religião em um mesmo espaço. Nosso objetivo foi também demonstrar que a correlação entre política e religião não é uma novidade dos nossos tempos, o qual faz do discurso religioso uma maquiagem para o discurso político ou vice-versa. Algo similar está presente no “Sermão pelo Bom Sucesso das Armas de Portugal contra as de Holanda” (1683), de Padre Antônio Vieira. Nele, o religioso jesuíta dialoga com Deus e o interpela para que fique ao lado dos portugueses na luta contra os holandeses protestantes, apresentados por ele como hereges, inimigos da fé católica.
No segundo encontro, tratamos do gênero poema. Apresentamos conceitos básicos deste tipo de texto, tais como sistema e classificação de rima e de métrica, elisão, escansão, classificação dos versos quanto ao número de sílabas poéticas, classificação de estrofes, ritmo e figuras de sonoridade. Depois, foi o momento de estudarmos a temática da oficina em poemas de diversos autores pertencentes ao arco temporal que vai do século XVII ao XXI. O primeiro a ser trazido à baila foi Gregório de Matos, cuja denominação como “Boca do Inferno” se deve a seus poemas satíricos, muitos deles permeados por críticas a pessoas públicas e governantes de sua época. Exemplo disso é o seu “À despedida do mau governo que fez este governador”, em que o poeta ironiza o comportamento de um político: “Senhor Antão de Sousa de Meneses, / Quem sobe a alto lugar, que não merece, / Homem sobe, asno vai, burro parece, / Que o subir é desgraça muitas vezes”. Na sequência, analisamos com o mesmo intuito poemas de Conceição Evaristo; Carlos Drummond de Andrade, Hilda Hilst, Gonçalves Dias, Murilo Mendes, José Paulo Paes e Cecília Meireles. Dessa plêiade de autores, ficou claro que a poesia é uma espécie de bandeira hasteada em defesa à democracia e que traz profundas reflexões político-sociais.
No penúltimo encontro, o gênero em destaque foi a crônica. Apresentamos as características e convenções deste gênero, o qual possui um pé no jornalismo e outro na literatura. Essa peculiaridade fez deste tipo de texto um prato cheio para discussões de cunho político, sempre marcadas por profunda ironia. Selecionamos crônicas que dialogassem de alguma maneira com o tema política e tivessem relação com algo atual: a Copa do Mundo. Nesse sentido, na crônica “País rico” (1920), Lima Barreto critica o fato de os governantes afirmarem que o país não tem dinheiro, por exemplo, para os hospitais, mas “vai dar trezentos contos para alguns latagões irem ao estrangeiro divertir-se com os jogos de bola como se fossem crianças de calças curtas, a brincar nos recreios dos colégios”. Em “O álbum da copa” (2014), Antonio Prata discorre sobre o sentimento dúbio do povo brasileiro dividido, na copa tupiniquim de 2014, entre o “Pra frente, Brasil!” e o “Não vai ter Copa!”. Segundo o cronista, antes da década de 70 esta duplicidade não havia, porque apenas se torcia. “Então vieram os generais”, escreve Prata, “e parte da esquerda passou a torcer contra a seleção, pois via na vitória verde e amarela um triunfo verde oliva”. Estudamos ainda as crônicas: “Da salvação da pátria” (1964), de Carlos Heitor Cony, e “A eleição diferente” (1955), de Carlos Drummond de Andrade.
O quarto encontro foi dedicado ao estudo de dois gêneros: o conto e o romance. A finalidade era apresentar semelhanças e diferenças entre eles no que diz respeito à criação de enredo, espaço, tempo, personagem e narrador. A estrutura organizativa foi estudada a partir do conto “No Retiro da Figueira”, de Moacyr Scliar. A análise temática incidiu principalmente em excertos das seguintes obras: “Memórias de um Sargento de Milícias” (1854), de Manuel Antônio de Almeida, “Triste fim de Policarpo Quaresma” (1915), de Lima Barreto, e “Os Sertões” (1902), de Euclides da Cunha. O entrecruzamento entre literatura, religião e política é evidente. A figura de Antônio Conselheiro surge como síntese dessa tríade na medida em que é apresentado como líder messiânico-sebastianista e porta-voz de árduas críticas à República recentemente instaurada no Brasil.
Após este percurso de quatro encontros, ficou claro que a relação entre política e religião não é um fenômeno isolado ou datado do mundo atual, fruto dos embates políticos acirrados por meio de nosso recente processo eleitoral. Ao contrário, essa temática faz-se presente em cenas cotidianas do século XVII ao XXI, das quais a literatura, por meio de seus diversos gêneros, serve de testemunho e depositório para que o presente não esqueça o passado. É a este movimento que nos encaminham também os vários textos produzidos por participantes da oficina. E que bom que assim o seja!
Por Thiago Maerki
Confira os trabalhos realizados pelos participantes da oficina "Literatura, religião e democracia em perspectiva" realizada em novembro na Biblioteca de São Paulo.
Thiago Maerki é mestre e doutor em Teoria e História Literária pela Unicamp. Durante o doutorado, passou um ano acadêmico a realizar pesquisas junto à Universidade do Porto (Portugal). Atualmente, realiza pós-doutorado em Literatura na Unifesp e é pesquisador associado da Hagiography Society (EUA). Além disso, é professor de Língua Portuguesa e Literatura no ensino básico.