Edição 27 - Dezembro/2022 | Tema

Conexão Brasil-Portugal-Moçambique: Modernismo

Fernando Siniscalchi

Esta oficina surgiu do convite de nosso colega, professor Pedro Marques, um dos coordenadores do Programa de Extensão Literatura Brasileira no XXI, parceria entre a SP Leituras e a Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). E foi com grande alegria e nós, Carina e Simone, aceitamos o desafio de estabelecer um diálogo entre Brasil, Portugal e Moçambique tendo o Modernismo como grande tema. Queríamos oferecer aos participantes o contato com autores e obras representativos do modernismo português e da literatura moçambicana, mas que pudesse, ao mesmo tempo, expressar esse diálogo. A oficina se organizou, assim, em quatro encontros, em duas grandes partes. Na primeira, tratamos do modernismo em Portugal, respectivamente do que se chamou de Primeiro e Segundo Modernismo. A segunda foi dedicada a apresentar a literatura moçambicana, de sua origem à atualidade, e algumas ressonâncias no diálogo com o modernismo brasileiro.

O primeiro encontro abordou a importância das revistas Orpheu e presença, principais veículos de discussão e expressão do modernismo em Portugal. Para apresentar a poesia de Fernando Pessoa, em especial de seus quatro heterônimos principais (Alberto Caeiro, Álvaro de Campos, Bernardo Soares e Ricardo Reis), tivemos a participação do professor Leonardo Gandolfi, do Departamento de Letras da UNIFESP. Em seguida, a professora Simone Nacaguma apresentou, em linhas gerais a importância da revista presença, destacando a reflexão de José Régio acerca da ideia de “literatura viva”. Para tanto, lemos o conto “História de Rosa Brava”, pensando a concepção de literatura e o pensamento de Régio sobre a sociedade portuguesa marcada pelo patriarcado, em especial, sobre o lugar da mulher nesse contexto. 

No segundo encontro, ampliamos o escopo sobre o Modernismo em Portugal, sob uma perspectiva historiográfica, a partir de uma reflexão sobre Modernidade, a constituição de novos imperialismos, a constituição do Estado Novo em Portugal, bem como seu final com o advento da Revolução dos Cravos, em 1975, e o processo de luta de libertação das colônias portuguesas. A partir desse contexto pós-colonial, lemos e analisamos com os participantes o conto “Marido”, de Lídia Jorge. A partir dos conceitos de habitus e campo, de Bourdieu, problematizou-se a mentalidade colonial/patriarcal entranhada na sociedade portuguesa determinando subjetividades. Esse panorama e a reflexão sobre a literatura pós-colonial em Portugal objetivou preparar os cursistas para a segunda parte da oficina, que seria dedicada ao início e à consolidação da literatura moçambicana.

Desse modo, no terceiro encontro, sob condução da professora Carina, iniciamos a incursão pela literatura moçambicana. Tratamos das primeiras manifestações literárias no país, relembrando o papel crucial da imprensa na divulgação dos textos – naquele momento, sobretudo a poesia circulava nos jornais e periódicos. Refletir sobre diferentes momentos e tendências desde a formação dessa literatura, segundo algumas perspectivas teóricas, nos ajudou a chegar então à discussão acerca de ressonâncias do modernismo brasileiro nessa trajetória. 

Poemas de Rui Knopfli, Noémia de Sousa e José Craveirinha iluminaram nosso debate, em que observamos não só referências explícitas a alguns brasileiros (como o poema de Noémia dedicado a Jorge Amado, ou quando Knopfli trata da “Terra de Manuel Bandeira”), mas a busca pela afirmação da “moçambicanidade”, ou seja, de uma literatura com cores locais. Nesses poemas, despontam principalmente a presença do indivíduo negro enquanto sujeito e suas vivências, bem como a resistência contra o regime colonial.

Por fim, no quarto e último encontro, nosso olhar se dirigiu às obras ficcionais em prosa da literatura em Moçambique, sobretudo a partir dos anos 60 – início da luta pela independência do país. O conto “As mãos dos pretos”, da obra Nós matamos o cão tinhoso, de Luís Bernardo Honwana, foi a leitura inicial, despertando reflexões, a partir da ótica infantil do protagonista, sobre o preconceito racial corrente no período colonial. Dois contos de O regresso do morto, de Suleiman Cassamo, foram alvo das discussões, desta vez sobre a cisão identitária do indivíduo que, ao sair do interior para estudar na cidade, se vê subjetivamente transitando entre dois mundos conflitantes (no conto “Madalena, xiluva do meu coração”); também sobre as cicatrizes físicas e psicológicas que marcam uma mulher subjugada a seu marido e às tradições patriarcais que a aprisionam numa união insustentável (em “Nglina, tu vai morrer”). Por fim, o romance Niketche: uma história de poligamia, de Paulina Chiziane, em pequenos trechos deu a dimensão da abordagem que a autora realiza sobre a situação da mulher moçambicana no contexto poligâmico, que, via de regra, invisibiliza suas vivências, direitos e expressão da subjetividade. 

Acreditamos que o objetivo maior de nossa proposta com essa oficina – ampliar o repertório de leitura dos participantes, por meio da leitura e discussão de autores representativos do modernismo português, bem como da literatura moçambicana – foi alcançado, diante dos comentários positivos que obtivemos ao longo dos encontros. Pudemos discutir algumas das aspirações modernistas, sejam brasileiras, em diálogo com a literatura moçambicana, sejam portuguesas, em semelhanças ou distanciamentos ideológicos e estéticos. A construção do saber no ambiente do projeto Literatura Brasileira no XXI, distante de formalidades e visando à fruição pelo debate aberto, assim, propiciou um interessante passeio pelos diálogos e caminhos possíveis da literatura – através do tempo, dos territórios e de suas plurais vozes. 

Por Carina Carvalho e Simone Nacaguma

Carina Carvalho é poeta, trabalha com edição e revisão de materiais didáticos e de aprendizagem socioemocional. Mestra em Estudos Literários pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), ela assina a série poética Ensaio para sair de casa, que integrou a coletânea do II Prêmio Ufes de Literatura. Carina é autora dos livros de poemas "Marambaia", "Passiflora" e "Corpo clareira". 

Simone Nacaguma é Bacharel em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas/UNICAMP, Mestre em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo/USP (2002) e Doutora em Teoria e História Literária, área de concentração Literatura Portuguesa, pela Universidade Estadual de Campinas/UNICAMP (2010). É docente de Literatura Portuguesa na Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (EFLCH) da Universidade Federal de São Paulo/UNIFESP, campus Guarulhos. Atualmente, desenvolve projeto de pós-doutoramento sobre Literatura e Saúde Mental no Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva na Escola Paulista de Medicina (EPM) da UNIFESP e exerce a função de Pró-Reitora Adjunta de Extensão e Cultura na mesma universidade. 

Leia também

Amazônias poéticas: culturas, heterogeneidades, hibridismos

Em estudo primoroso, Ana Pizarro (2012) detecta que os escritos sobre Amazônia possuem uma especificidade. A grandiosidade da floresta e a dimensão fluvial saltam aos olhos de quem se defronta com ela. O rio é espaço, moradia, elo entre comunidades. Por ser uma fonte de nutrição para humanos ...

Leia Mais!
Mundos possíveis da ficção sertaneja

Convém reconhecer, desde logo, a imprecisão do título desta oficina. A categoria "prosa sertaneja" não corresponde a uma noção evidente, estanque ou autoexplicativa, sendo necessário conferir-lhe precisão e consistência. No caso, a prosa analisada acomoda textos díspares, escritos em circ...

Leia Mais!
A moda caipira encanta a nova metrópole

Na oficina Relações entre música sertaneja e canção popular urbana, trabalhamos com o cancioneiro sertanejo, observando o diálogo das canções com as transformações da cidade de São Paulo, procurando compreender, a partir do estudo das composições, os processos de assimilação da cultu...

Leia Mais!
Poesia brasileira no XXI: vozes, letras e suportes

Escrever sobre a poesia do século XXI é uma tentação de muitas faces. A face juvenil reuniria seus amigos identificados pela vida e arte. Nós os representantes da geração, compartilhando livros, autores, referenciais e estilos. Tudo tão bonito a ponto de provocar inveja a quem não foi conv...

Leia Mais!
Entre canto e fala: o fogo

Qual o lugar da voz na literatura do século XXI? Qual o papel da performance nos dias de hoje, ela que outrora foi o meio difusor principal da produção poética? Num tempo em que a expressão emanava sobretudo do corpo que se pronuncia diante da audiência. Tempo em que a palavra se apresentava ...

Leia Mais!
O povo brasileiro na literatura, construindo identidades pretas

As literaturas nacionais, assim como outras expressões culturais, contribuem para desenhar a ideia que os indivíduos formam sobre seu país, sobre sua língua e sobre muitos aspectos de sua cultura nacional. Como ilustração, podemos pensar em enunciados como “Minha terra tem palmeiras/ Onde c...

Leia Mais!