Edição 48 - Setembro/2024 | Entrevista
Os limites entre Literatura e História
LBXXI: Os conceitos de “prosa” e “sertanejo”
são polissêmicos e abrangentes. Como é possível definir a prosa sertaneja em
meio a tantas categorias?
Cleber Vinicius do Amaral Felipe: Por meio da oficina, buscamos demonstrar a imprecisão do seu título e, em especial, da categoria "prosa sertaneja", que não corresponde a uma noção evidente, estanque ou autoexplicativa. A prosa analisada acomoda textos díspares escritos em circunstâncias diversas, mas com muitos traços e aspectos formais comuns. Expressões genéricas, como é o caso de “prosa sertaneja”, soam atrativas em títulos e notícias, mas demandam atenção e análise, pois normalmente agregam textos plurais.
LBXXI: Você parte da análise de obras literárias consagradas - os romances O Cabeleira (1876), de Franklin Távora, O Quinze (1930), de Rachel de Queiroz e Vidas Secas (1938), de Graciliano Ramos - para discutir as possibilidades da prosa na atual conjuntura. Qual a importância de ler entender essas obras na perspectiva contemporânea?
Cleber Vinicius do Amaral Felipe: Entre O Quinze, de Rachel de Queiroz, e Vidas Secas, de Graciliano Ramos, existem várias analogias, muitas delas associadas ao chamado “Romance de 30”. As proximidades com O Cabeleira (1876), de Franklin Távora, e, amor, (2024), de Mateus Ântoni Rúbia, já não são tão imediatas. Ler essa literatura é importante, não em função de um pressuposto utilitário/pragmático, mas como aquisição cultural, ampliação de repertório e pretexto para encarar, com mais propriedade, a chamada “literatura brasileira”. Além disso, é necessário pensar que a leitura nunca é natural, ou seja, seus pressupostos são convencionais, datados. Ler “na perspectiva contemporânea”, em outras palavras, significa também ser lido pelos repertórios da contemporaneidade e empregar esses repertórios nos esforços de leitura. Ter acesso a essa literatura não deixa de ser uma oportunidade de suspender, ainda que por tempo determinado, o ritmo frenético cotidiano, balizado por uma agenda globalizada, neoliberal que estimula a pressa, o utilitarismo. Tudo isso desestimula a leitura de textos literários.
LBXXI: A chamada "literatura das secas" construiu uma estrutura narrativa para um fenômeno climático e social dito regional. O que dizer sobre o papel da ficção na formação do imaginário relacionado ao Nordeste brasileiro, sertão e seca?
Cleber Vinicius do Amaral Felipe: Eu diria que a ficção sempre desempenha um papel fundamental na constituição de imaginários e que, por isso, também funciona como indício para sondar imaginários de outros tempos e lugares. Com a “literatura das secas” não é diferente, mas convém tomar cuidado para não conceber as práticas letradas como “evidência” ou “transparência” de um imaginário, cultura ou contexto social. Dito de outro modo, literatura não “documenta” a realidade, apresentando características próprias e dinâmicas particulares. Quando o leitor tem acesso à literatura, ele não acessa o autor, mas os artifícios por ele criados. A invenção, disposição, registro, circulação e recepção desses artifícios apresenta historicidade, e isso me parece fundamental em uma leitura comprometida com a historicidade dos textos, não bastando um exercício ingênuo de comparação entre “texto” e “contexto”.
LBXXI: Há um diálogo entre ficção e não ficção, entre a Literatura e a História, nos romances da seca?
Cleber Vinicius do Amaral Felipe: Com certeza. Como já foi dito, a ficção é histórica, ou melhor, apresenta historicidade. De modo complementar, pode-se afirmar que a história nos alcança por intermédio de narrativas, muitas delas carregadas com aspectos provenientes da ficção. Os limites entre Literatura e História são tênues e uma boa forma de lidar com eles seria analisar a historicidade, o estilo e as características das narrativas literárias e historiográficas, reconhecendo as particularidades e prioridades de cada gênero.
LBXXI: Você diz que Vidas Secas de Graciliano Ramos é seu preferido e que tem sempre um pretexto para trazê-lo à mesa. Na sua opinião, em que medida os assuntos abordados neste livro, em particular, continuam atuais, ainda que tenham sido escritos em 1938?
Cleber Vinicius do Amaral Felipe: A leitura, mesmo desinteressada, não deixa de ser uma atualização do texto. Como a seca continua sendo um problema em 2024, o tema persevera, comovendo e despertando o interesse de um determinado público, como é o caso do leitor sensível diante do colapso ambiental, que muitos ainda insistem em negar. Mas não é apenas a temática do livro de Graciliano Ramos que causa interesse: o estilo econômico, as personagens, os aspectos formais, os capítulos curtos... Quando retomo a “Vidas Secas” há, sem dúvidas, um interesse particular, um juízo próprio amparado no gosto; o fato de ser um romance “canônico” também desperta curiosidade; como se trata de um romance breve, os alunos costumam encarar a leitura, o que talvez não ocorresse com um romance de 500 páginas. Enfim, como ensinava a Retórica, é preciso levar em consideração o público, o auditório, e ajustar a matéria de modo a alcançar efeitos persuasivos. Como estimular a leitura de textos literários hoje? É uma pergunta que nunca cessa, pois o público sempre se altera, é diverso, múltiplo.
LBXII: O que você quer dizer quando afirma que “o mundo sem literatura é sem graça”? Pode desenvolver esta ideia para nós?
Cleber Vinicius do Amaral Felipe: A literatura constrói mundos alternativos, mesmo quando pretende imitar a realidade de seu tempo. Ela convida o leitor a abandonar, por um momento, seu próprio mundo, medíocre, precário e limitado como o mundo de qualquer leitor nos inúmeros momentos ou lugares nos quais possa ter nascido. Em decorrência dos hábitos, das coerções sociais, da propaganda e de outros aparelhos ideológicos, tendemos a naturalizar artifícios do nosso presente; muitas vezes, a literatura contribui com a inversão desse processo, demonstrando que outros mundos são possíveis.