Edição 50 - Novembro/2024 | Entrevista

Arte, literatura e combate

Nelson Flávio Moraes (Lena LIma). Patricia Anunciada (arquivo pessoal)

Nesta entrevista, Patricia Anunciada e Nelson Flávio Moraes colocam os holofotes na contribuição da cultura dos povos africanos para a formação da identidade nacional, comentando fatores presentes desse legado na escrita de autores mais contemporâneos como Conceição Evaristo, Jeferson Tenório, Cristiane Sobral, Akins Kintê, Eliana Alves Cruz, Allan da Rosa etc.Quando entendemos que o contemporâneo é o resultado de fatos passados, compreendemos também que todas as dinâmicas sociais, culturais e políticas sofreram e sofrem mudanças contínuas.”, destacam. Os professores, pesquisadores e escritores comentam ainda como os movimentos sociais atuais continuam a encontrar inspirações na literatura e cultura crioulas.

Confira!

LBXXI: Sabemos que o “Brasil Crioulo” é definido por Darcy Ribeiro como uma das identidades culturais brasileiras. É possível dizer que o Brasil Crioulo não é apenas uma fase histórica ou um conceito étnico, mas uma base contínua para a compreensão das dinâmicas sociais, culturais e políticas no Brasil de hoje? Como o termo pode ser entendido de forma mais abrangente?

Patricia e Nelson: O termo é bastante abrangente, remetendo ao período da exploração da cana-de-açúcar, com mão de obra escravizada. Durante as aulas pudemos analisar as obras de artistas que retratam esse período e revelam como o racismo já estava embrenhado na sociedade brasileira. Darcy Ribeiro destaca a importância desse período na história do Brasil e como a cultura afro-brasileira foi se configurando, destacando também como os povos africanos contribuíram para a formação da identidade nacional. Quando entendemos que o contemporâneo é o resultado de fatos passados, compreendemos também que todas as dinâmicas sociais, culturais e políticas sofreram e sofrem mudanças contínuas. Por exemplo, se pensarmos nas tecnologias de resistências da população negra no Brasil, vemos que esse “Brasil Crioulo” também foi modificado, antes quilombos eram criados como um lugar de proteção e segurança, hoje, além da manutenção desses lugares, temos em diversas áreas, grupos que visam assegurar os direitos da população negra, inclusive juridicamente, ou seja, praticamente a extensão de uma luta que iniciou em um período denominado Brasil Crioulo.

LBXXI: Como esse contexto histórico influenciou o desenvolvimento de uma literatura negra no Brasil? Podem destacar autores e autoras mais representativos? 

Patricia e Nelson: Partindo do pressuposto de que a literatura também pode ser construída através da oralidade, a literatura negra surge como um grito de denúncia contra as injustiças sofridas pelos negros brasileiros e pelos africanos trazidos forçosamente para o Brasil. Em Literatura Negro-brasileira, o escritor Cuti defende o uso da terminologia ao reivindicarmos não só uma frente literária nacional, mas também a demarcação de produções criativas feitas por pessoas negras, que, diferentemente dos africanos que vivem em seus países de origem, não precisam combater o racismo brasileiro, a literatura negro-brasileira nasce dessa intersecção racial e territorial. Quando pensamos nos primeiros escritores negros, um dos autores de destaque é o advogado abolicionista Luiz Gama, filho de Luiza Mahin, uma muçulmana que lutou contra a escravidão, tendo papel de destaque na revolta dos Malês. Outra autora de destaque é Maria Firmina dos Reis, primeira autora abolicionista que representa em suas obras personagens negras de forma não estereotipada, retratando-as com subjetividade e várias camadas de humanidade, fatores presentes na escrita de autores mais contemporâneos como: Conceição Evaristo, Jeferson Tenório, Cristiane Sobral, Akins Kintê, Eliana Alves Cruz, Allan da Rosa etc. 

LBXXI: Falando um pouco mais sobre Luiz Gama: ele denunciou a violência da escravidão e a hipocrisia das elites, trazendo um olhar crítico sobre a formação social do Brasil. Como a literatura negra dialogou com os movimentos sociais da época - abolicionista e outros de luta por direitos?

Patricia e Nelson: As artes, de maneira geral, sempre colaboraram com os movimentos sociais, elas ainda funcionam como um instrumento de combate e como um catalisador para as horas de respiro. Com a literatura negra não foi diferente, ela denuncia o racismo, os maus tratos a que era submetida a população negra. É uma literatura que conscientiza, que chama os leitores para a luta, que não os deixa em um lugar de passividade. Seja para combater as forças opressoras ou até mesmo para refletir frente a uma autodesconstrução, a literatura produzida por autores negros parte de um lugar onde o social sempre esteve presente; é só observarmos de onde vieram esses escritores, e, por mais que escolham falar ou não de temas ligados à raça, o momento político de suas produções estará em diálogo com o mundo. Por exemplo, o Movimento Negro Unificado (MNU) surge em 1978, mas ele é fortemente influenciado pelos autores e pesquisadores que lhe precederam e que conclamaram a população negra a lutar contra todas as formas de opressão como o racismo, o machismo, o preconceito de classe social.

LBXXI: Como as escritoras negras, em particular, abordaram a questão da interseccionalidade de raça e gênero em suas obras?

Patricia e Nelson: As escritoras negras falam sobre a importância de se enegrecer o movimento feminista, abordando as especificidades das mulheres negras, e sobre a necessidade de feminizar o movimento negro, uma vez que quando surgiu esse movimento não se discutia as pautas das mulheres negras, como o machismo, a hiperssexualização de seus corpos, a dificuldade de encontrar creche para os filhos, de encontrar uma posição no mercado de trabalho que não fosse o trabalho doméstico, por exemplo. Essas autoras retratam em suas obras mulheres negras e sua luta contra o machismo e o racismo que estão constantemente presentes em suas vidas. Na obra Insubmissão lágrimas de mulheres, por exemplo, Conceição Evaristo nomeia cada conto com o nome de uma mulher e retrata a luta cotidiana de cada uma delas contra diferentes formas de opressão.

LBXXI:  Grande parte da resistência e da produção cultural do Brasil Crioulo foi transmitida pela oralidade, músicas e tradições culturais, mais do que pela escrita formal. A produção literária de autores negros apresenta quais desafios no que diz respeito à publicação e visibilidade? Houve, ou ainda há, alguma forma de exclusão ou silenciamento?

Patricia e Nelson: Há vários pesquisadores, como a Profª. Dra. Regina Dalcastagnè, que mostram os desafios quanto à publicação, por mais que as redes sociais auxiliem dando visibilidade, o número de escritores negros publicados ainda é inferior quando comparado aos brancos, principalmente se olharmos para as grandes editoras. Talvez hoje, o maior desafio esteja em torno da temática, há um certo “fetiche” em ler histórias em que personagens negros sofram racismo, sem entender que um autor negro pode falar sobre qualquer assunto. Ficar em estado de alerta é importante para não cairmos em ciladas que limitem a criação literária de autoria negra. 

LBXXI: Movimentos sociais contemporâneos, como o movimento negro, o feminismo negro e a luta pela igualdade racial no Brasil, continuam a encontrar inspirações na literatura e cultura crioulas?  Poderiam falar um pouco sobre o legado dessa produção literária e cultural para o Brasil contemporâneo?

Patricia e Nelson: Com toda certeza! Podemos dizer que os movimentos sociais e as artes caminham juntas, mesmo quando não existe uma intenção direta pelo social, essas inspirações coexistem, pois, sublimar as questões que nos sufocam também é existir, está aí um grande ato de militância, querer existir para além, e, vale ressaltar, isso é um direito conquistado com toda luta feita desde o Brasil Crioulo, quem veio antes, para que hoje um escritor negro fale em seu livro sobre amor ou aborde a vida de um personagem que foi à praia. Um grande exemplo de autor que traz em sua obra questões para além das pautas raciais é o Jeferson Tenório, em O Avesso da Pele, por exemplo, o narrador leva o leitor a refletir sobre inúmeras ideias existenciais como as relações familiares, os afetos amorosos etc., temas que são caros a todas as pessoas. 

LBXXI: Há algo que gostariam de acrescentar?

Patricia e Nelson: Ao falarmos de literatura, raça e gênero, não podemos esquecer de abordarmos as masculinidades negras, tema que está em destaque atualmente. Veja, questionar como essa masculinidade é formada e quais nuances possui, nos coloca de frente com o espelho, inclusive em observar como socialmente os estereótipos são construídos, mas que na literatura outras possibilidades de existências para esses homens negros são apresentadas. Há uma gama de autores negros que ao apresentarem seus personagens, quebram com uma estrutura que insiste em matar desde o nascimento os meninos negros. Eles apresentam narrativas sensíveis e muito diversas, colocando em pauta um lado que dificilmente vemos quando estamos viciados em ouvir uma história única.

 

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